22 março 2006

A Internet por todos e todos pela Internet

Por Guilherme Felitti
De IDG Now!
16 março 2006

Desde os tempos em que o homem abandonou o estilo de vida nômade e descobriu formas de cultivar alimentos, a humanidade trabalha em grupo. Homens de negócios do século 21 gastam horas lendo livros de auto-ajuda, com objetivo é motivar suas equipes ao trabalho colaborativo. Portanto, podemos concluir que trabalhar de forma colaborativa não é nenhuma novidade, certo? Errado. Com a Internet, essa prática atingiu escala global, graças à facilidade de se transmitir e de se publicar informação.

Veja os exemplos da Wikipedia, do movimento de software livre e dos blogs. O primeiro é uma enciclopédia online, com a colaboração de milhares de pessoas, que já conta com mais de 3,5 milhões de artigos publicados em 123 línguas. O movimento de software livre está mudando a forma como se desenvolvem programas e ameaçando o poder da maior empresa de software do mundo, a Microsoft, que em alguns países, entre eles o Brasil, já pensa em novos modelos de licenciamento. E, por fim, os blogs. Ainda pouco difundidos no Brasil como uma opção à mídia tradicional, eles permitiram, com uma ferramenta fácil para publicar conteúdo na Internet, que qualquer pessoa pudesse ser “um jornalista”. “O que a Internet permitiu foi amplificar enormemente a capacidade de pessoas cooperarem à distância, em um grau que tecnologias anteriores não haviam ainda permitido”, afirma Tadao Takahashi, ex-presidente do Programa Sociedade da Informação do Brasil e um dos principais especialistas em Internet no Brasil.

A amplificação, sem dúvida, foi maior ainda para os entusiastas do software livre. “Nós transmitíamos os códigos uns para os outros em ligações telefônicas entre PCs ou mesmo por fitas magnéticas. Era mais devagar, mas funcionava”, lembra Richard Stallman, guru do software livre e fundador da Free Software Foundation, em entrevista exclusiva para o IDG Now!. Por mais que já fosse praticada, a introdução da tecnologia – e suas promessas de facilidades – criou um fluxo de colaboração que permite que as obras coletivas sejam visualizadas, consultadas e atualizadas, no ritmo da Internet.

Takahashi remete à montagem da primeira Enciclopédia Britânica, no século 19, quando milhares de pessoas redigiram, distribuíram e editaram milhões de verbetes de língua inglesa. O produto de tal esforço, porém, não acompanhava o que acontecia após sua publicação. “Em todos os outros meios, você poderia fazer textos ou produções coletivas, mas ela nunca foi mutante. A obra era um retrato congelado de quando um grupo entrou em acordo”, pondera Beth Saad, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP, que estuda comunicação digital.

Ao contrário do que se possa pensar, essa construção coletiva conta com um fator muito mais determinante do que a crescente facilidade do acesso a máquinas e a banda larga: a mudança no perfil do usuário que navega. Os jovens envolvidos em projetos como a Wikipedia apresentam um interesse muito maior em dividir seus conhecimentos com outros.

A necessidade de dividir conhecimentos não explica, por si só, o fenômeno de construção conjunta, experimentada atualmente pelos usuários online. Stallman estabelece que entusiastas envolvidos na modificação e distribuição de softwares livres trabalham por motivos que vão da moral frente ao grupo à diversão. “Há uma maneira superficial de olhar para essa questão, que é contribuir por ódio à Microsoft”, afirma. “Muitos outros desenvolvedores de softwares proprietários estão fazendo coisas ‘ruins’ (sic) também”.

Longe do argumento apaixonado, Takahashi afirma que a predisposição à colaboração não envolve reputação ou idealismo: é genética. “Um colaborador pode racionalizar, mas essa propensão à sociabilidade e à cooperação “gratuitas”, desinteressadas, é o que nos distingue como espécie”.


CREDIBILIDADE

Qual a credibilidade dessas fontes novas de informações? Será que podemos confiar em enciclopédias online, com a Wikipedia, ou em blogs, com seus jornalistas cívicos?

Um dos primeiros críticos do novo status quo da Internet foi Nicholas Carr, autor do artigo "The amorality of Web 2.0", no qual critica o "culto ao amadorismo" da nova geração de Internet. Carr é o polêmico jornalista que escreveu o artigo "IT doesn´t matter", na Havard Business Review, defendendo a tese de que os investimentos em tecnologia não traziam nenhuma vantagem competitiva às empresas. Agora, Carr volta seu discurso afiado contra a Web 2.0, atacando diretamente um dos ícones da nova era: a Wikipedia, enciclopédia online construída livremente pelos internautas. "Os promotores da Web 2.0 veneram o amadorismo e não confiam no profissional", escreveu o jornalista.

A Wikipedia, criada pelo inglês Jimmy Walles, é de fato a principal personagem deste fenômeno de construção de conhecimento coletivo na Internet, mas não é imune a falhas. Em novembro do ano passado, a credibilidade da enciclopédia digital foi abalada, quando foram descobertos artigos específicos editados para que ficassem favoráveis a determinadas pessoas.

Um dos exemplos foi o do ex-VJ Adam Curry, apontado como um dos criadores dos podcasts. Curry retirou da própria biografia referências sobre iniciativas anteriores de podcast, fazendo com que sua participação parecesse mais importante do que realmente foi. Mesmo com o pedido de desculpas, dias após a ação, Curry já havia deflagrado dúvidas sobre a credibilidade de um serviço feito por inúmeros colaboradores. “Do jeito que a Wikipedia é feita, existe uma dose de confiabilidade”, afirma Beth Saad. “Uso a Wikipedia, não como única fonte de informações, mas uso”.

A própria página de informações gerais sobre a enciclopédia avisa que a Wikipedia não garante a validade dos seus próprios dados. Pesquisa conduzida pela revista Nature duas semanas após o escândalo envolvendo Curry concluiu que a enciclopédia online continha quase o mesmo número de erros que a tradicionalíssima Enciclopédia Britannica. Entre 42 verbetes, foram encontradas três imprecisões na versão online e quatro na impressa.

Outro dado da pesquisa ilustra a mudança no perfil de quem contribui: apenas 10% entre mais de mil doutores ou pesquisadores ligados à Nature já escreveram algo para a Wikipedia. A grande maioria dos verbetes foi escrita por usuários comuns, o que reflete o papel dos anônimos na construção da obra, mas também pode levantar suspeitas sobre as informações.


BLOGS E JORNALISMO "OPEN SOURCE"

Mais do que a Wikipedia pontualmente, o caso suscitou dúvidas sobre a confiabilidade do chamado “jornalismo open-source”: corrente de jornalismo online feita por colaboradores voluntários e com edição livre do material.

“[O jornalismo open-source] é um exemplo bastante importante de construção de conteúdo. Tem a ver com fatos” pondera Saad. A pesquisadora, no entanto, vê na falta de um fio condutor a principal falha da iniciativa.“Você corre o risco de não ter credibilidade nas informações. Os defensores dizem que continuam fazendo jornalismo, com valores como objetividade e clareza, mas os mesmos grupos não deixam claro o que é o grupo. Dizem que fazem um texto coletivo, que conta a verdade, mas que verdade?”, indaga a professora universitária.

O fluxo de material produzido pela mudança na mentalidade do usuário, “mais preocupado em compartilhar”, de acordo com Saad, pede uma nova maneira de se lidar com a distribuição gratuita e massiva de documentos na web. É necessário estipular novas regras para o uso, repasse ou transformação de textos e fotos.

Atualmente, o “selo” que regula o compartilhamento legal de conteúdo online atende pelo nome de Creative Commons. “Você tem modelos de licenciamento mais flexíveis, o que dá opções para essas ferramentas colaborativas”, explica Ronaldo Lemos, advogado mineiro responsável pelo protocolo no Brasil.“Quem contribui e usa o Creative Commons estipula o que o usuário que acessa pode fazer com o material – como ler, copiar e distribuir”, explica.


SOFTWARE LIVRE

O que a criação e a popularização do Creative Commons confirmam é a visão que comunidades entusiastas do software livre já apoiavam e divulgavam desde a década de 80: a noção de que o material que circula online, como textos, fotografias e desenhos, não tem impedimentos de uso e distribuição.

No caso do software livre, o conjunto de regras que regula a distribuição é o General Public License (GPL), criado em 1989 por Stallman e que deve ter sua terceira visão completamente revisada até janeiro de 2007. No sentido contrário, dá para imaginar que o fenômeno poderá ser levado ao mundo real para ser explorado comercialmente no futuro. Para que haja justiça na hora da repartição de um suposto lucro, porém, seria necessário que se formulasse um novo modelo comercial.

“Tirando os santos e os financiados por terceiros, como universidades, ONGs e governos, qualquer pessoa envolvida nesses “mutirões cívicos virtuais” terá de pensar em algum retorno material, se a atividade começar a demandar tanto tempo que comece a sobrar demasiado mês no final do salário” argumenta Takahashi.

Lemos explica que já existem exemplos de serviços comerciais que usam a licença Creative Commons e que arrecadam dinheiro com a distribuição, por exemplo, de música. “A gravadora virtual Jamendo já mostrou bons resultados financeiros da exploração de cantores e bandas que licenciam seu conteúdo por CC. Toda receita é baseada em doações repassadas para os artistas”, conta Ronaldo Lemos. O advogado não explica, no entanto, se tal modelo comercial é estável o suficiente para manter uma empresa de médio porte.

O modelo comercial pode estar longe de ser definido, mas já existem exemplos da contribuição online no mundo real. Em setembro, a revista Esquire, voltada ao estilo de vida masculino, permitiu que usuários da Wikipedia mexessem no editorial que seria publicado na revista de papel. O editor da revista, A. J. Jacobs, disse na ocasião que gostou bastante do resultado. “Foi absolutamente fascinante”, revelou em anúncio na própria Wikipédia. Como ferramenta de contribuição, a Internet ainda vai precisar de muitas mãos.