22 maio 2006

A digitalização dos livros

Por Pedro Doria
em O Estado de S. Paulo
22 maio 2006

Os números são os seguintes: 32 milhões de livros, 750 milhões de artigos, 25 milhões de músicas, 500 milhões de imagens, 500 mil filmes, 3 milhões de vídeos e 100 bilhões de páginas da web. Este é o tamanho do conhecimento humano, segundo os cálculos de engenheiros entrevistados pelo repórter Kevin Kelly para a revista dominical do New York Times.

Poucos mitos são mais fortes, entranhados em nossa cultura, quanto os mitos medievais. J. K. Rowling sabia disso quando encaixou a pedra filosofal no primeiro Harry Potter; Dan Brown sabia quando tascou em O Código Da Vinci uma das muitas lendas sobre a descendência de Cristo. Borges também sabia. É a pedra que faz chumbo virar ouro, a fonte da juventude, a cidade feita de ouro e a biblioteca com todos os livros do mundo. Eram ricos em sonhos impossíveis os europeus da Idade Média.

A biblioteca com todo o conhecimento não é mais tão impossível, evidentemente. Num tempo em que o conhecimento humano era bem mais modesto, tal biblioteca houve em Alexandria. Alguns de seus tomos, ainda os temos: os Diálogos de Platão, os Estudos de Pitágoras. Mas grande parte daquela coleção que pode ter encampado até 70% de todo o escrito pela humanidade se perdeu. Quanto não teve que ser redescoberto nos séculos seguintes que gregos, egípcios ou fenícios já não soubessem?

Na Universidade de Stanford, um robô com o tamanho de um carro grande escaneia e vira delicadamente páginas de livros raros para compor o banco de dados do Google. Faz isso a um ritmo de mil páginas por hora. Não é mau.

Ainda as contas de Kelly: 15% dos livros estão em domínio público; 10% estão nos catálogos de editoras e, portanto, há com quem negociar cessão de direitos - e a negociação está em rumo. O resto, ou 75% de todos os livros, estão no limbo. Fora de catálogo, órfãos de autor mas, por conta das leis de copyright, não podem ser copiados.

Todo o conhecimento humano cabe em 50 petabytes. Um prédio de dois andares armazena esses discos todos. Vai precisar de um ar condicionado potente, mas isto não é problema. Dá uns anos, cabe num iPod.

No momento em que todo o conhecimento estiver digitalizado e disponível para buscas, algo novo surgirá. É tão vasto o conhecimento que não há gênio que possa, como acontecia na Renascença, ter uma boa idéia de tudo. Então, às vezes, um mistério da medicina já estará bem encaminhado se juntar algo que alguns físicos sabem com outro algo que alguns químicos sabem. Quando tudo estiver digitalizado e pessoas começarem a fazer buscas cruzadas e a enlaçar links, o conhecimento fatalmente se expandirá.

Já vai tudo muito além do mito medieval, obviamente. Vai acontecer. A questão é só quando. E quando acontecer, algo fundamental vai mudar. O livro estará fadado a ser peça de entretenimento. Leremos romances em papel com lombada, mas o grosso há de ser digital. Não havia livros nos tempos de Alexandria - eram rolos - e quando existir a segunda grande biblioteca, quase nada será em livro.

A cada dois meses, tenho que encarar, em cima aqui da mesa, a pilha de volumes. Invariavelmente, na hora de distribuí-los pelas estantes, isso requer rearrumar prateleiras para abrir espaços. Podia tomar uma manhã, mas às vezes toma um fim de semana. É um prazer tátil o de redescobrir um volume - um prazer que tenho de ter discretamente.

Às vezes, compro livros escondido de Leila e os ponho rápido na estante para curtir um dia, de forma que ela não perceba a pilha na mesa crescendo demais. E às vezes não faço nada, só sento e vasculho com os olhos até achar um volume do qual não me lembrava.

Um dia, ainda terei um apartamento forrado de estantes como aquelas de um livro que Leila me deu, At home with books, estantes bonitas feitas para o ambiente, que acompanham escadas, dobram elegantes as quinas de parede.

Quem sofre disso, de livro, sabe que existe um tipo de prazer que a web não fornece. Mas prazeres são culturais e nascem e morrem - e nada é tão radical. Essa idéia de ter biblioteca em casa ficará obsoleta aos poucos. Espaço é cada vez mais caro e estará tudo na rede para qualquer hora.

O fascínio pela idéia da superbiblioteca, no entanto, vem com uma certa tristeza miúda que cala dentro.