13 junho 2006

Catador de lixo em São Paulo monta biblioteca comunitária com mais de 7 mil volumes

Por Eliane Brum
em Época
9 junho 2006

O catador de lixo Severino Manoel de Souza fechou os olhos. A guilhotina preparava-se para decepar Machado de Assis. Algumas das melhores páginas da literatura brasileira seriam reduzidas a papel branco, 8 centavos o quilo. "Pára", gritou Severino. "Isso é um crime muito grande." Foi nesse momento, tendo por cenário um galpão de reciclagem, que começou a biblioteca dos sem-teto do edifício Prestes Maia.

No centro de São Paulo, o prédio é considerado a maior ocupação vertical da América Latina. É dividido em dois blocos, um de 20 andares e outro de nove. Abriga 468 famílias, 1.630 pessoas, entre elas 315 crianças e 95 velhos. Garçons, manicures, ambulantes, faxineiras, seguranças e muitos bolivianos que trabalham em regime de semi-escravidão em confecções dos bairros do Brás e do Bom Retiro. Desde setembro do ano passado, essa ratoeira de esperanças ganhou ares de milagre ao testemunhar nos porões o nascimento de uma biblioteca comunitária.

Ao impedir a execução de Machado de Assis, Severino não pôde mais se livrar dos livros. Ele e a mulher, Roberta Maria da Conceição, de 44 anos, passaram a abrigar todos os exemplares sem-teto que iam topando pela rua. Arrumavam um canto no carrinho de papeleiro e depois empilhavam uma parte no apartamento invadido, outra no porão do Prestes Maia. Foram os primeiros 600 livros da biblioteca, hoje com quase 7 mil exemplares. Tal é a popularidade da obra de Severino que ele não pára de receber novos inquilinos doados por escolas e anônimos. Só mesmo Paulo Coelho, autor mais procurado pelos moradores do edifício e das redondezas, é dos poucos fardões da Academia Brasileira de Letras que ainda não compareceram.

Severino, sertanejo de Pernambuco, nunca sentou em um banco de escola. "Não tenho nem cultura nem literatura", diz. Depois de descarregar um caminhão nos arredores do Recife, ainda garoto, Severino se perdeu. Varou a noite sem conseguir decifrar destinos de ônibus e indicações de placas. Quando finalmente chegou em casa, avisou ao tio: "A partir de hoje vou parar de ser pessoa burra, analfabeta, cega e tapada".

Postou-se diante de uma banca de jornal e pediu: "Moço, vosmecê tem uma carta de ABC?". O moço tinha. Deu até de presente. "Coloquei o abecedário, o primeiro livro fundado no Nordeste, debaixo do meu chapéu de couro e andei com ele na cabeça por cinco meses", diz Severino. "Tinha ouvido falar que a ciência do livro vai passando para a cabeça." Por sorte também estudou um tanto na boléia do caminhão. O tio avisou: "Vai ficar traumatizado de tanto ler".

Ele aprendeu. Passou então a escrever o nome em carvão, na areia, nos postes, povoou um pedaço de Pernambuco com traçados severinos. Quando achou que estava bonito, comprou um "lápis de pau-brasil". Ficou tão sabido que voltou ao sertão com duas canetas e uma caderneta no bolso. Quando começou a alfabetizar, tinha 26 alunos. Acabou ensinando 231 a "assinar o nome e conhecer literatura".

O coronel da vizinha cidade de Orobó, Rafael Virgulino de Aguiar, supostamente um parente de Lampião, era homem bem macho e lacrimejou de alegria. "Aquilo foi um carinho muito grande pra ele", diz Severino. Foi mesmo. O coronel deu traje completo para todos que tinham idade para ser eleitor, pagou o registro no cartório e avisou que os menores de idade, mas com altura vistosa, podiam espichar um pouco os anos para exercer o dever cívico do voto o mais rápido possível. O coronel, Severino sublinha, era um patriota.

Severino seguia um atalho de prosperidade quando descobriu que a família tinha se bandeado do sertão para São Paulo. Seguiu logo atrás. Esse desvio no destino lhe custou caro. Teve um dissabor atrás do outro, chegou a cair 9 metros de um andaime, por pouco não morre. Levou porretadas da polícia, perdeu dinheiro e saúde. Uma desgraça atrás da outra. Até convidar a ambulante Roberta "para fazer um lanche". A conversa se estendeu para "um entendimento" no quartinho apertado em que ela se espremia no centro. E seguiu pelas ruas até o fatídico encontro com Machado de Assis.

Esse é só um resumo da vida de cordel de Severino Manoel de Souza. Aos 56 anos, ele é uma espécie de José Mindlin dos sem-teto. Tomado de tais amores pela biblioteca que ajudou a fundar, a renda caiu muito desde então, e os sete membros da família sobrevivem hoje com menos de R$ 100 por mês. Um azougue o Severino. Ele agora sonha com uma brinquedoteca para a criançada. "Bota aí na revista que as doações de livros e brinquedos podem ser feitas diretamente na Prestes Maia, 911", afirma. O que Severino diz, se escreve.