13 junho 2006

Frequentadores de biblioteca pública costumam depredar obras sem pensar no coletivo

Por Tiago Gonçalves
em Gazeta do Cambuí
9 junho 2006

Na penumbra dos corredores ou na efervescência das mesas de estudo da Biblioteca Púbica Municipal Professor Ernesto Manoel Zink, os vândalos da literatura agem sem dó nem piedade. Armados até os dentes, munidos de suas canetas multicoloridas, aterrorizam as indefesas páginas dos livros de consulta. Uns assassinam palavras, outros ferem frases e alguns exterminam histórias ou seqüestram as obras. Os mais audaciosos mutilam com voracidade as folhas de papel, interrompendo, muitas vezes, a história de amor da meiga princesinha ou as bravuras do herói em combate com dragões. A ação é rápida, como num piscar de olhos. Sem deixar rastros ou sequer uma pista, somem entre as prateleiras empoeiradas dos clássicos universais. Solitários e abandonados a única alternativa que resta aos livros pichados é padecer na incerteza, à espera de uma possível reforma ou restauração. “Isso prova que o homem é o maior inimigo dos livros. É uma ação terrível, essas pessoas quebram todo um processo de aprendizado. Cortam pela metade as informações”, lamenta a bibliotecária Suze Elias.

Um típico exemplo é Jeferson. Jovem, moreno, estatura média, jaqueta invocada e um boné da moda que, na maioria das vezes, serve para esconder o rosto. Apesar do sorriso maroto cravado, as mãos agem rapidamente deixando marcas para os futuros leitores. “Tipo assim, não tem nada para fazer. Daí, a gente rabisca. O sinistro é deixar a nossa marca para ficar famoso”, esclarece, com um lápis nas mãos prestes a pichar. Ali mesmo, no pequeno espaço branco das páginas, as palavras se unem na tentativa de expulsar o invasor, mas são todas em vão. Declarações de amor à namorada ou frases do tipo: “Vascão timão campeão” perturbam definitivamente o território do aprendizado. “Ficava na sala zoando, escrevia nas folhas o nome da galera ou das meninas. Pichava caretas e outras coisas. Tá ligado?”, revela Marcos Vinícius, que se intitula um ex-pichador. “Hoje em dia não faço isso mais. Todo ser humano passa por essas fases de rebeldia”.

Mensagens de cunho racista, nomes obscenos e desenhos eróticos são os mais encontrados entre o rol das atrocidades literárias. “É muito comum depararmos com bobagens, chifres e dentes desenhados em políticos, comentários maldosos e palavrões absurdos”, conta João Henrique Cuelbas, bibliotecário responsável pela Biblioteca Municipal. Porém as depredações não restringem só às baderneiras pichações. Folhas arrancadas, páginas cortadas e rapto de livros são uma pulga atrás da orelha dos bibliotecários. “As pessoas recortam ou rasgam aquilo que estão pesquisando. Bem que poderiam copiar, mas preferem agir de má fé”. Amontoadas desordenadamente, as fichas de livros retirados e não devolvidos ganham aos montes as gavetas enferrujadas dos arquivos da biblioteca. “De janeiro para cá, cerca de 190 títulos foram perdidos. As pessoas retiram e não entregam. É uma dó, até porque são livros muito procurados pelas pessoas”.


AÇÃO PREMEDITADA

Na marca do segundo tempo de aula, Romário avança pelas carteiras laterais, toma o livro do colega, dribla a professora e, com letras garrafais e ilegíveis, crava sorrateiramente as iniciais “RGS” em uma das folhas. Ressabiado, ao pé do ouvido, traduz as três letras. “Significa Os Registrados, um dos maiores grupos de pichação de Campinas. Pode escrever, mas num coloca meu nome inteiro não!”, uma condição para continuar a conversa. Jeferson, que acompanha toda a prosa, não perde tempo ao propor algumas regras à entrevista. “Vai querer tirar foto da gente? Então tem que ser rápido, porque estamos em território dos caras [referindo ao grupo de pichadores rival].Também não pode aparecer o rosto da gente”.

Tempos atrás, o jovem Marcos Vinícius também vivia entre pichações e rebeldia. Não tinha pudores e nem limites ao manusear uma obra. Rabiscos aqui, desenhos acolá. Depois de um ano de uso, o livro de português tornaria irreconhecível, caminhando rumo ao lixo. Porém, numa reviravolta no modo de encarar os estudos, as lembranças das badernas já se perdem definitivamente no passado. Traços de malandragem dão espaço a uma mochila cheia de livros bem cuidados. “As pessoas não zelam pelo livro e isso atrapalha outros colegas na hora de estudar. É uma questão de consciência com o material escolar”, avalia Marcos, com os olhos vidrados na dupla Romário e Jeferson, feito um pai que prega um sermão nos filhos arteiros.


RESTAURAÇÃO

Após serem comunicados dos acidentes com os livros, os bibliotecários encaminham as obras adoentadas a uma espécie de pronto-socorro, localizado nos fundos da biblioteca municipal. No local, uma equipe especializada está de prontidão para reparar as atrocidades ou, até mesmo, ressuscitar os títulos através de uma trabalhosa restauração. “Nós avaliamos o estado que o livro foi encontrado. Depois a importância dele dentro do acervo da biblioteca”, explica João Henrique. Nesse meio termo, como num hospital público, os títulos esperam dias e meses na fila para o atendimento. Uns aguardam o transplante de páginas, outros uma pequena cirurgia de reparos. Mas, por acaso do destino, alguns não suportam a maratona de espera e o descarte é inevitável. “Muitos casos não têm salvação. Dessa forma, ou o livro é doado para a reciclagem ou jogado fora. Uma injustiça com o patrimônio público.”

Ao discursar sobre as depredações, um filme passa pela mente de Suze Elias, que não se intimida em contar os inúmeros casos que presenciou. Desde aquela vez, quando a mãe rasgou uma página da enciclopédia para ilustrar o trabalho de escola das filhas até o obcecado homem de 40 anos, que não poupava os jornais com cartinhas racistas e mensagens picantes.

“Nesses dois casos fizemos boletim de ocorrência e o processo ainda está rolando. No segundo caso, o homem foi algemado na frente de todo mundo e levado ao Primeiro Distrito. Afinal, não são apenas os jovens, os adultos também contribuem para a depredação do patrimônio”. Com um ar de revolta, a bibliotecária guarda delicadamente na prateleira um título recentemente adulterado. “Sempre tem um maluco que gosta de privatizar as coisas públicas. Biblioteca é um lugar onde o freqüentador tem que ser generoso ao usufruir dos livros”, ensina.