03 agosto 2006

Entulhos autoritários

Por Mauro Santayana
em Jornal do Brasil
28 julho 2006

O veto do Presidente Lula ao projeto corporativista da Federação Nacional de Jornalistas, que tornava ainda mais iníqua a lei da Junta Militar contra a liberdade de expressão, deve ser visto também como o início do retorno aobom senso na política de emprego e trabalho em nosso país.

O projeto, como se sabe, foi apresentado pelo "destacado" parlamentar Pastor Amarildo, do PSC de Tocantins, que se encontra envolvido até o pescoço no charco dos sanguessugas. Faltou à Câmara e ao Senado o cuidado de examinar a proposta, do ponto de vista constitucional (convém perguntar para quê existe a Comissão de Constituição e Justiça nas duas casas). Não só a exigência de diploma para o exercício do jornalismo contraria o capítulo de Direitos e Garantias da Carta em vigor, como também viola os acordos internacionais de que é signatário o Brasil, conforme deixou bem claro o ex-chanceler Celso Lafer, em artigo recente, publicado pela Folha de S. Paulo.

Os acordos internacionais integram o elenco de leis nacionais, a menos que sejam formalmente rejeitados. Sendo assim, para cumprir o que determina a Organização dos Estados Americanos, o que o governo deve fazer é revogar, pura e simplesmente, a lei de 1969, um dos últimos entulhos autoritários do regime militar. A minha posição sobre o assunto é conhecida há muitos anos. Nunca neguei que também defendo uma posição de classe. A liberdade de imprensa - e não "da"imprensa - é a liberdade de expressão impressa, ou seja, a de qualquer pessoa escrever e publicar o que quiser, sem licença do poder público. Ela não pode ser restrita aos que têm acesso à universidade, por melhor que seja a universidade.

Certa vez - e disso se lembrará o presidente Lula -disse-lhe, e aos que o acompanhavam, em jantar em Roma (entre eles, o excepcional jornalista e melhor figura humana que é Ricardo Kotshko), que ele, o torneiro mecânico de Garanhuns, poderia vir a ser presidente da República - o que veio a ocorrer bem depois -, mas estava impedido de trabalhar como simples repórter do Diário do Grande ABC.

É certo que para dirigir um automóvel, que nunca consegui aprender, é preciso freqüentar uma escola especializada e submeter-se a teste prático. É inadmissível o trabalho do cirurgião que não conheça anatomia e fisiologia, e não seja hábil com o bisturi. Mas a única técnica que convém a um jornalista dominar é a da redação, e o único curso recomendável é o elementar, onde aprenda bem as regras corriqueiras da língua pátria. E, ao que parece, ortografia e gramática não fazem parte dos currículos universitários. Não me canso de repetir que a essência de nosso ofício não é técnica, mas, sim, ética.

Certa vez, na Comissão de Estudos Constitucionais, como se lembrará o professor Cândido Mendes, tive difícil diálogo com um dos mais respeitáveis brasileiros do século passado, o venerável Barbosa Lima Sobrinho, que defendia a exigência do diploma. Eu lhe disse, então, que a nossa atividade pode ser a mais honrada de todas, ou a mais abjeta delas, dependendo de quem a exerça. O diploma não confere honra a ninguém, nem impede que se avilte.

A proliferação de cursos universitários, para ofícios singelos, como os de bibliotecários e secretárias, faz parte do grande mercado de ilusão dos tempos modernos, e serve ao fundamentalismo mercantil. Milhares e milhares de jovens sacrificam-se e sacrificam seus pais na busca de um diploma que lhes venha conferir modesta estabilidade, e acabam caindo na fossa do desemprego e do desespero.

É hora de voltar ao senso comum.