06 novembro 2006

Enquanto país comemora centenário do 14-Bis, acervos correm risco

Por Eduardo Geraque
em Folha Online
23 outubro 2006

Desde 1891, quando embarcou para Paris aos 18 anos de idade, Alberto Santos-Dumont passou a fazer história e a construir, de forma intencional, um acervo sobre sua vida. Hoje, 115 anos depois, o que resistiu desse acervo em solo brasileiro está espalhado, e sob risco. Parte da documentação só existe graças a atitudes individuais.

O baú de vime com 2,2 mil documentos, por exemplo, cruzou o oceano rumo ao Brasil com o próprio Santos-Dumont. Como lembra Marcos Villares Filho, sobrinho-bisneto do ilustre aviador brasileiro, foi o próprio personagem que, na Europa, contratou empresas para selecionar tudo o que saísse nos jornais relacionado à aviação. A maior parte desse material falava dos próprios feitos do mineiro de Barbacena (Santos-Dumont nasceu no sítio Cabangu, distrito de Palmira, no dia 20 de julho de 1873).

"Comecei a me interessar por tudo isso há pouco mais de dez anos, quando ouvi essa história do baú, da própria Sophia Helena, sobrinha-neta do inventor", contou Villares Filho à Folha. O marido dessa nova personagem da família é uma das pessoas que contribuíram de forma individual para preservar o patrimônio histórico. Durante cinco anos, o tenente-brigadeiro-do-ar Lavenère-Wanderley recuperou quase todos os recortes, a maior parte publicados entre 1899 e 1903.

"O baú foi levado por Santos-Dumont para a Encantada (casa que ele tinha em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro). Por causa da Revolução Constitucionalista de 1932, a família, temendo eventuais saques, transportou o acervo para a cidade do Rio de Janeiro."

Apenas 30 anos depois é que Lavenère-Wanderley resolveu mergulhar naqueles papéis. "O baú ficava no porão de uma casa da família no bairro do Flamengo. Não existia o aterro e a água do mar chegava a atingir o local", relata o sobrinho-bisneto do inventor brasileiro.

Depois de passar pelas mãos de alguns guardiões, os recortes históricos chegaram a um local seguro. Os cinco álbuns catalogados estão sob responsabilidade do Centro de Documentação da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. O órgão está digitalizando todo o conteúdo, que foi salvo das ondas do mar e da revolta de 32 (ano da morte de Santos-Dumont). "Esse material doado para a Aeronáutica é muito rico, mas pouco conhecido da maioria do público", informa Villares Filho.

A questão do desconhecimento popular, sob alguns aspectos, pode ser ainda mais grave. Até hoje, por exemplo, não existe um museu exclusivamente montado sobre o pioneiro aviador nas grandes cidades brasileiras.

"Existem acervos em vários locais, e todos estão sendo cuidados com a ajuda de pessoas. Neste país, infelizmente, ainda não temos a cultura institucional de preservar a história", argumenta o sobrinho-bisneto de Santos-Dumont. Na lista de iniciativas que tentam barrar a diáspora do acervo, entra o nome de Monica Castelo Branco, que cuida do museu da casa natal do aviador.

CORRENTE E CACHORRO

Na cidade de São Paulo, pelo menos desde 1999, a sensibilidade pela figura de Santos-Dumont não está em alta. Desde que o museu da Aeronáutica foi retirado do parque do Ibirapuera --os aviões históricos ficavam em exposição na Oca (Pavilhão Governador Lucas Nogueira Garcez)--, todo o acervo foi colocado em dois galpões dentro do Cemucam (Centro Municipal de Campismo), em Cotia, na Grande São Paulo e, em plena comemoração do centenário, estão longe dos olhos do público.

Apesar de existir uma placa indicando um museu na entrada do parque, que é aberto ao público, o visitante se decepciona quando tenta segui-la. Primeiro uma corrente fechada. Depois, uma cerca, um portão sem ninguém e um cachorro latindo. O caseiro informa que ali nunca foi um museu. Mas que as peças ali depositadas, inclusive alguns aviões inteiros, recebem a atenção de restauradores com freqüência.

"Lá funciona a nossa reserva técnica", avisa o major-brigadeiro José Vicente Cabral Checchia, presidente da Fundação Santos-Dumont. A instituição foi criada há exatos 50 anos, nas comemorações do meio século do vôo do 14-Bis.

Agora, os itens mais importantes do acervo, como a nacele (cesto onde fica o piloto durante o vôo) do 14-Bis, única peça original do histórico avião, os óculos e as luvas usadas no dia 23 de outubro de 1906 --dia que o 14-Bis voou no Campo de Bagatelle, em Paris-- estão guardadas na Base Aérea de Guarulhos. "A boa notícia é que a Prefeitura de Guarulhos vai desapropriar um terreno de 30 mil metros quadrados para a criação do Museu Santos-Dumont", promete Checchia.

Segundo Edmilson Souza Santos, secretário de Cultura da cidade, o convênio entre o município e a Fundação Santos-Dumont, que já dura 48 meses, será renovado por outros 60 meses. "Até o fim do ano que vem, pelo menos parte do museu já deve estar funcionando."

Se uma das exceções sob cuidados públicos é a casa "Encantada", em Petrópolis (RJ), a cidade de São Paulo também conta com um rico acervo sobre Santos-Dumont nas dependências do Museu Paulista, no Ipiranga. Os 1,4 mil itens catalogados pela instituição estão encastelados, sob guarda da Universidade de São Paulo. Mesmo o cesto do 14-Bis não pode ser visto pelo público.

Depois de guardado por anos, ele será exposto, em Guarulhos, apenas a partir de amanhã. Se, além das pessoas, as instituições passarem a tomar conta também dos acervos, talvez a história documentada pelo próprio Santos-Dumont ganhe ainda mais relevância.