10 janeiro 2007

Obras raras correm risco constante

Por Henrique Ostronoff
em Problemas Brasileiros
janeiro e fevereiro 2007

"Isso não acontece apenas aqui." A afirmação de Luís Francisco Carvalho Filho, diretor da Biblioteca Mário de Andrade, mantida pela prefeitura de São Paulo e localizada no centro da cidade, poderia soar como uma tentativa de saída pela tangente à pergunta do repórter sobre o caso de furto de peças do acervo. Afinal, a instituição tem sido foco da imprensa paulista desde que foi anunciado o desaparecimento de dezenas de livros e gravuras raras da segunda maior biblioteca do país.

A resposta de Luís Francisco, na verdade, reflete a forma como são tratados, desde há muito tempo, os acervos não apenas das principais bibliotecas do país, mas de todo tipo de entidade pública encarregada de guardar, preservar e expor bens da memória. O Brasil possui, por exemplo, importantes documentos que registram a história da América colonizada pelos portugueses, obras de arte nacionais reconhecidas internacionalmente e ainda exemplares produzidos por representantes da tradição artística ocidental. Têm-se verificado, ultimamente, movimentos para tentar recuperar essas instituições, mas são tímidos diante dos investimentos necessários para deter a dilapidação e a deterioração do patrimônio cultural brasileiro.

Museus e igrejas antigas, principalmente, têm sido alvos constantes de ladrões. A lista de bens culturais procurados, disponível no site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), traz mais de mil itens. De acordo com a classificação do instituto, são cerca de 200 esculturas, 126 peças de iluminação – castiçais, arandelas e tocheiros –, 104 objetos de culto – cálices, crucifixos, relicários –, além de utensílios domésticos, objetos pessoais, entre outros que sumiram de instituições brasileiras. Os estados mais atingidos são aqueles que possuem maior número de cidades históricas e museus: Rio de Janeiro, com 538, Minas Gerais, com 176, e a Bahia, com 124 peças.

Em nota publicada no início de 2006, o Ministério da Cultura avalia que os bens culturais são o terceiro maior alvo de tráfico no mundo. "Perdem apenas para o de drogas e o de armas. A grande quantidade de casos de furto é resultado da valorização dos bens culturais brasileiros no país e no exterior." É sabido que ladrões especializados nesse tipo de crime não agem somente no Brasil. Roubos de obras artísticas e antiguidades ocorrem também em museus de países desenvolvidos. Segundo a Interpol, esse tipo de crime é o quarto mais importante do planeta.

O site da Art Loss Register, organização dedicada à recuperação de obras de arte desaparecidas, informa que são registradas por ano cerca de 10 mil ocorrências em um banco de dados já abastecido com 100 mil entradas. Residências particulares, as maiores vítimas, representam 54% do total de locais visitados pelos ladrões. Em seguida, vêm museus e galerias, com 12% cada. Um caso recente, no Brasil, aconteceu no Museu da Chácara do Céu, no bairro carioca de Santa Teresa. Durante o desfile dos blocos do sábado de carnaval de 2006, bandidos armados aproveitaram-se da confusão nas ruas para roubar telas de Pablo Picasso, Salvador Dalí, Claude Monet e Henri Matisse, além de um livro de gravuras de Picasso.

VÍTIMAS ILUSTRES

Com a sucessão de casos de furto de acervo ocorridos nos últimos anos, nem mesmo a principal biblioteca do país ficou imune. A Fundação Biblioteca Nacional (FBN), sediada no Rio de Janeiro, teve origem em 1808, com a chegada ao Rio de Janeiro da família real portuguesa, que trouxe na bagagem 60 mil peças, entre livros, manuscritos, mapas, estampas, moedas e medalhas. A princípio, todo esse material ficou guardado numa sala do Convento da Ordem Terceira do Carmo, até que, em 1810, foi inaugurada a Real Biblioteca. Hoje, com milhões de peças, entre as quais milhares pertencentes a coleções raríssimas, com exemplares datados do século 11, é considerada a oitava maior biblioteca nacional do mundo. Desde 2004, com a Lei do Depósito Legal, a instituição tornou-se a "guardiã da memória gráfica brasileira", conforme se define. Isso porque, de tudo o que se publica no país, uma cópia deve ser enviada para a fundação.

Em 2005, durante uma greve de funcionários, a seção de Iconografia da FBN foi vítima de um dos maiores crimes contra o patrimônio nacional. Sumiram, além de aquarelas e desenhos, fotografias brasileiras do século 19 doadas por dom Pedro II e que integram a Coleção Teresa Cristina, tombada pela Unesco em 2003 como "memória do mundo". Calcula-se que tenham desaparecido mais de mil itens. O número exato, porém, não é conhecido. Segundo Carmem Moreno, diretora do Centro de Referência e Difusão, desde julho de 2006 está sendo realizado um inventário para apurar quantas e quais peças estão faltando. Por enquanto, foram recuperadas apenas 60 das obras roubadas.

O furto da Biblioteca Mário de Andrade, descoberto em agosto de 2006, não se sabe exatamente quando ocorreu. Só foi percebido quando Rizio Bruno Sant’Ana, curador de obras raras, foi buscar algumas gravuras para atender ao pedido de um usuário e notou que elas não estavam no lugar. A primeira providência da direção foi fazer um levantamento dos itens da seção. Chegou-se à conclusão de que faltavam, até novembro de 2006, 30 livros e 139 gravuras. Mas não se conhece ainda a real extensão do prejuízo.

Entre as obras levadas estão peças singulares, como os livros Hore Intemerate Beate Marie Virginis secundum Usum Romanum, de 1501; Histoire d’un Voyage Faict en la Terre du Brésil, de 1585, escrito pelo francês Jean de Léry, que esteve no Brasil durante a ocupação do Rio de Janeiro por Villegaignon; uma edição espanhola de 1639 dos Lusíadas, de Camões; e as primeiras edições de Memorias Posthumas de Braz Cubas, de 1881, e Chrysalidas, de 1864, ambas de Machado de Assis. As gravuras foram cortadas de livros, mutilando-os. São litografias coloridas de cenas e paisagens brasileiras produzidas no século 19 por viajantes europeus, das quais 42 de autoria do francês Debret, 58 do alemão Rugendas e 24 do Atlas de Spix e Martius.

Os responsáveis pelo acervo da Mário de Andrade ficaram surpresos. Uma regra, comum às bibliotecas públicas, não permite aos visitantes entrar nas dependências com volumes nos quais possam esconder livros ou documentos (embora o uso de grandes casacos não seja proibido). Na seção de obras raras o acesso é controlado, e os usuários não têm contato direto com as estantes. Dos 40 mil volumes desse departamento, 10 mil são considerados especiais e ficam guardados em armários de aço trancados com cadeados, a cujas chaves alguns poucos funcionários graduados têm acesso. Não foram encontrados sinais de invasão nem de arrombamento.

Dias depois, o diretor da Mário de Andrade descobriu que a Babel Livros, do Rio de Janeiro, havia leiloado alguns dos volumes furtados da biblioteca. Os donos da empresa alegam que não conheciam a procedência das peças. Com a divulgação do caso, alguns colecionadores que haviam arrematado os livros os devolveram à Mário de Andrade. Como medida emergencial para evitar outras ações criminosas, as portas das salas onde se encontram as obras raras estão sendo equipadas com fechaduras eletrônicas.

Outros casos de crimes praticados contra o patrimônio de bibliotecas foram noticiados pela imprensa. Em junho de 2006, foi revelado que do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro haviam desaparecido cerca de 2 mil cartões-postais com imagens da cidade de diversos períodos, uma coleção inteira de 87 gravuras de Debret, 146 estudos para pintura do artista Lucílio de Albuquerque e, calcula-se, centenas ou, talvez, milhares de fotos. Também foram levados periódicos publicados no final do século 19 e começo do 20. Para o delegado da polícia federal Deuler Rocha, que investigou o caso na época, esse teria sido "o maior furto já registrado no Brasil, em quantidade, de bens históricos".

Houve ainda, em 2003, na biblioteca do Museu Nacional, do Rio de Janeiro, o desaparecimento de 1.484 peças, das quais cerca de 600 já voltaram a integrar o acervo do maior museu do país. No mesmo ano, o Museu Histórico e Diplomático, antigo Palácio do Itamaraty, também no Rio de Janeiro, teve furtadas nove gravuras de um atlas de 1712 editado pelo cartógrafo holandês Johannes Van Keulen, que foram recuperadas recentemente. A última notícia se refere à descoberta, em outubro de 2006, da falta de 120 livros raros da Biblioteca Pública do Paraná, em Curitiba. Entre os exemplares estão antigas edições do final do século 19 e começo do 20 de livros de Machado de Assis e 12 volumes das Oeuvres Complètes de Georges Louis Leclerc Buffon, edição em francês da Garnier Frères, com data de 1733.

ESCASSEZ DE RECURSOS

Não é apenas a falta de segurança que coloca em risco a memória bibliográfica e documental do país. Outro problema é a conservação dos acervos. A restauradora Norma Cassares, presidente da Associação Brasileira de Encadernação e Restauro (Aber) e uma das mais prestigiadas profissionais da área, diz que a situação na maioria das grandes bibliotecas e arquivos históricos está sob controle. Ela afirma, no entanto, que as instituições "vivem em dificuldades e, quando dispõem de alguma verba, recuperam apenas os livros em pior estado".

A situação ideal seria adotar a conservação preventiva, o que nem sempre é possível, pois demanda grandes investimentos principalmente para manter coleções com milhões de itens, como as da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Mário de Andrade. Por outro lado, a restauração de livros deteriorados tem um custo muito mais elevado. "O processo é caro, pois é feito por unidade, e por isso é preciso escolher bem aquilo que realmente merece ser restaurado", afirma Norma Cassares.

A conservação preventiva, segundo a presidente da Aber, é uma atividade que exige o envolvimento de uma equipe multidisciplinar. "Como se depende de condições ambientais, é preciso ter, além do conservador, um engenheiro que trabalhe com dinâmica do ar, um engenheiro de edificações e um de iluminação. Todos eles definem normas e condições para guardar um acervo histórico."

Segundo o Guia Básico de Conservação de Obras de Arte, editado pelo Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos (CPBA) – iniciativa criada em 1994 por meio de parceria entre instituições brasileiras e americanas, com o objetivo de difundir textos especializados sobre a área –, as principais causas de deterioração dos bens culturais são os agentes físicos (luz, temperatura e umidade), biológicos (insetos, fungos, bactérias, traças e roedores), químicos (poluentes e poeira) e mecânicos (vandalismo, manuseio incorreto e acidentes).

Em São Paulo, o Arquivo Histórico Municipal Washington Luís, subordinado ao Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura, guarda um quilômetro linear de documentos (cerca de 4 milhões) referentes à administração local. Lá estão as atas da Câmara de Santo André da Borda do Campo, primeira vila do planalto de Piratininga, datadas de 1555 a 1558, e as da Câmara de São Paulo, de 1559 a 1909, assim como registros de sepultamentos nos cemitérios paulistanos desde 1858 e os pedidos de licença para a construção de imóveis do século 19.

A memória da cidade está depositada em um casarão projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo em 1860. Apesar da elegância de suas linhas ecléticas, do salão de leitura com luz natural vinda da clarabóia e da beleza dos vitrais coloridos, a construção não é adequada para a função. Segundo a diretora do Arquivo Histórico Municipal, Liliane Schrank Lehmann, a estrutura do prédio não suporta o peso das estantes. Dessa forma, os documentos precisam ser guardados no antigo porão adaptado, onde não há equipamentos para o controle do ambiente. Embora o local não seja apropriado, Liliane explica que especialistas que visitaram o espaço garantem que as condições para a conservação são boas, pois a temperatura é estável. Enquanto as enormes salas do piso superior estão semi-ocupadas pelos setores administrativos, milhares de documentos históricos posteriores a 1921 não podem ser recebidos, para completar o acervo da instituição. Um antigo prédio anexo, que se encontra em péssimas condições, deverá passar por reformas para ampliar o Arquivo Municipal. Ainda assim, Liliane garante que "quando ficar pronto só será suficiente para conter documentos até 1935" – razão pela qual a Secretaria de Cultura estuda outras alternativas.

O setor bibliográfico do Museu Histórico Nacional, administrado pelo Iphan e localizado no Rio de Janeiro, apesar de relativamente pequeno, com cerca de 54 mil volumes, também passa por dificuldades. O laboratório de restauração de livros, segundo Eliane Vieira da Silva, responsável pela biblioteca, está parado há dois anos "devido à falta de funcionários e de concurso para contratação". Atualmente está em andamento uma triagem para determinar o número de obras que precisam de restauro. Eliane afirma que enquanto a instituição espera por recursos da Caixa Econômica Federal, a serem liberados em 2007 para esse fim, "prestadores de serviços sem a qualificação adequada" tratam de fazer a higienização do acervo para evitar a ação de insetos. A responsável pelo arquivo histórico do museu, Rosângela de Almeida Costa Bandeira, garante que, entre os documentos guardados naquele departamento, "de 85% a 90% estão em condições de regular a boa", e dos mais de 200 mil itens cerca de 5 mil já passaram pelo processo de higienização.

REAÇÕES

O quadro de dificuldades presente na maioria das grandes bibliotecas e arquivos históricos do país tem gerado algumas reações por parte de políticos e do poder público. A deputada federal Alice Portugal, do PC do B baiano, chegou a propor uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o roubo, a receptação, o contrabando e o tráfico de obras de arte, bens culturais e peças de arte sacra no país. Segundo ela, "estimulados pela ganância dos receptadores e pela falta de segurança dos acervos de algumas instituições e coleções particulares, os ladrões que atuam no Brasil roubam de tudo – de estátuas, quadros, imagens sacras, documentos e moedas a peças arqueológicas, fósseis e qualquer tipo de objeto considerado valioso para colecionadores". Ainda de acordo com a parlamentar, "uma parcela significativa das obras de arte furtadas é contrabandeada para fora do país, em roubos encomendados por antiquários e galerias de arte inescrupulosos". A proposta foi apresentada ao presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo, em 31 de janeiro de 2006. Embora conte com apoio oficial do Ministério da Cultura e do Iphan e já tenha assinaturas de deputados em número superior ao mínimo necessário para sua instalação, a CPI ainda não foi votada pelo plenário, condição necessária para ser aprovada e começar a funcionar.

Os governos também têm mostrado preocupação com a situação. A Biblioteca Mário de Andrade, construída na década de 1930, vai passar por ampla reforma e ampliação, ao custo de R$ 16 milhões financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. Segundo Luís Francisco Carvalho Filho, seu diretor, "desde a década de 1970 o prédio não comporta mais livros, o que impede sua modernização". Assim, a hemeroteca será transferida para um edifício em frente, desocupando 8 dos 22 andares da torre que abriga o acervo. Também será implantado um sistema de segurança para controlar o acesso de pessoas que circulam pela biblioteca. Luís Francisco acredita, no entanto, que apenas a atualização das instalações não é suficiente, e espera poder contar com mão-de-obra qualificada. "Em 1992, havia 66 bibliotecários; hoje, são apenas 25", diz.

Apesar das verbas escassas, a Fundação Biblioteca Nacional tem procurado modos de amenizar suas deficiências. Por meio da Lei Rouanet, a Petrobras destinou R$ 1 milhão à compra e instalação de um sistema de segurança. Segundo o arquiteto Luiz Antônio Lopes de Souza, do Núcleo de Arquitetura da Biblioteca Nacional, o controle de acesso dos 500 funcionários e 250 visitantes que freqüentam suas dependências diariamente será feito por um conjunto de 70 câmaras, algumas delas de longo alcance, roletas e cartões eletrônicos. Outra melhoria consiste no novo laboratório de restauro, fornecido pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em sistema de comodato. Contudo, há ainda grandes projetos à espera de recursos. De acordo com Luiz Antônio, a restauração da fachada do prédio é uma das prioridades; a outra é encontrar espaço para acomodar o acervo. Uma solução seria aproveitar a propriedade que a biblioteca possui no cais do porto. O problema, segundo o arquiteto, de adequar esse prédio, maior do que a sede atual, é a dificuldade para a obtenção de patrocínio, devido ao alto custo do empreendimento. No entanto, as obras são urgentes, pois, afirma ele, "além de receber 35 mil novos itens por mês, o espaço da Biblioteca Nacional foi projetado para 1 milhão de volumes e hoje temos 9 milhões".