05 março 2007

Periódicos científicos: A abolição das assinaturas

Por Miguel Conde
em Jornal da Ciência
26 fevereiro 2007

Os historiadores costumam apontar 1665 como o ano de nascimento do sistema moderno de publicação científica.

O “Journal des Sçavants”, criado em janeiro daquele ano em Paris, e o “Philosophical Transactions”, lançado dois meses depois pela Royal Society, em Londres, tornaram públicos debates que antes se desenrolavam em privado, principalmente nas cartas trocadas entre os homens ilustrados.

Desde então, os periódicos tornaramse o meio por excelência de partilha do conhecimento na comunidade científica.

Ao mesmo tempo em que desempenham um papel democratizador, porém, muitas dessas publicações são empreendimentos comerciais. Disseminam saber, claro, mas só para quem pode pagar a assinatura.

Um movimento internacional que reúne cientistas, centros de pesquisa e fundos de fomento está tentando mudar isso.

No último dia 15, a Comissão de Ciência e Pesquisa da União Européia recebeu uma petição com mais de 20 mil adesões — entre elas as de três ganhadores do Prêmio Nobel — defendendo que os resultados de pesquisas financiadas com recursos públicos sejam colocados, até seis meses depois de sua publicação, num repositório de acesso livre e gratuito na internet.

Nos EUA, será votado este semestre um projeto de lei que, se aprovado, tornará obrigatória a divulgação em sites de acesso livre dos resultados de estudos realizados com verbas federais, também num prazo máximo de seis meses após a publicação.

A mudança mais radical, no entanto, já está em marcha. É a criação de revistas onde o acesso gratuito é imediato.

Ao contrário da maioria dos periódicos científicos tradicionais, os de acesso livre são empreendimentos sem fins lucrativos.

Sua proposta é abolir o sistema atual, onde o leitor sustenta as publicações através de assinaturas, por outros, onde os custos são pagos pelos próprios autores, ou por meio da venda de anúncios.


PERIÓDICOS CIENTÍFICOS: ACESSO LIVRE SE AMPLIA, MAS NÃO É CONSENSO

Royal Society questiona viabilidade financeira de publicações que permitem leitura gratuita dos artigos.

Para os defensores de mudanças, há uma questão ética envolvida na divulgação de pesquisas financiadas com recursos públicos: por que uma pessoa deveria ser obrigada a pagar para ter acesso aos resultados de um estudo financiado com a ajuda dos seus impostos? — Quando há pesquisa paga pelo público, o público merece ter acesso a ela — diz Jimmy Wales, um dos criadores da Wikipedia e signatário da petição entregue à comissão da UE. — Não faz sentido você pagar por uma pesquisa que depois não estará disponível. Hoje já existem experimentos que podem nos dar uma maneira mais livre de compartilhar conhecimento.

O modelo mais promissor é o que faz com que os próprios autores, em vez dos leitores, sustentem as revistas.

Harold Varmus, prêmio Nobel de Medicina em 1989 e um dos signatários da petição (os outros ganhadores do prêmio a assinar foram Martinus Veltman, Nobel de Física em 1999, e Peter Agre, Nobel de Química em 2003) foi um dos primeiros cientistas de peso a defender o acesso livre à pesquisa científica.

Não apenas à financiada por recursos públicos, mas a qualquer pesquisa.

Para provar que a internet permitia uma revolução nos modelos de publicação científica vigentes, ele criou em 2000 a Public Library of Science (PLoS), um grupo de revistas online no modelo descrito por Wales: quem as sustenta são os autores, não os leitores.

A idéia é que os cientistas incluam os custos da publicação de seus artigos no orçamento geral da pesquisa, do qual eles representariam um percentual pequeno.

Varmus diz que as leis propostas na UE e nos EUA não dizem respeito ao acesso livre, exatamente, mas a uma ampliação do acesso. A diferença, explica, é que no acesso livre a gratuidade é imediata, enquanto no caso em discussão há um embargo.

“É importante distinguir entre publicações de acesso livre (que tornam as pesquisas disponíveis imediatamente) e o acesso público ampliado, em que os trabalhos são primeiro publicados em revistas tradicionais, que cobram assinatura, e depois depositados numa biblioteca digital”, afirma.

Gratuidade aumenta impacto de artigos, diz pesquisadora. A adoção de um prazo de seis meses após a publicação até que a pesquisa se torne “aberta” é uma tentativa de ampliar o acesso sem prejudicar as vendas das revistas científicas tradicionais.

Há quem diga, no entanto, que essa precaução é desnecessária.

É o caso de Barbara Kinsop, uma das criadoras da Bioline International, um site que divulga artigos publicados em periódicos de países em desenvolvimento.

“Os editores têm medo de que a liberação imediata do acesso aos artigos vá diminuir as assinaturas. Não há prova de que isso vá acontecer. Em 2005, houve 2,5 milhões de acessos aos artigos dos periódicos reunidos pela Bioline International, uma clara indicação de que o acesso livre aumenta a visibilidade destas publicações”, diz.

Em parte graças ao empenho do próprio Varmus, a PLoS atraiu colaboradores ilustres como o entomologista Edward Wilson e o geneticista James Watson.

Mas ainda são poucas as publicações de acesso livre que têm o impacto de revistas mais tradicionais. Isso pode mudar se os fundos de fomento à pesquisa passarem a recomendar, ou mesmo a exigir, a publicação em periódicos de acesso livre como condição para o financiamento.

Foi o que fez o Wellcome Trust, uma das mais importantes instituições mundiais dedicadas a pesquisas sobre saúde. Para permitir que cientistas financiados pelo fundo e por outras instituições com as mesmas políticas pudessem continuar a publicar em seus jornais, a Royal Society criou no ano passado o seu próprio sistema de acesso livre, o EXiS Open Choice.

Nele, os autores publicam em revistas “fechadas” da sociedade, mas podem pagar para tornar seus artigos abertos.

“É um modelo híbrido que permitiu que autores financiados por grupos como o Wellcome Trust continuassem a publicar em nossos periódicos. Até agora, tem havido uma utilização modesta do serviço”, diz Stuart Taylor, o diretor de Publicações da Royal Society.

Embora esteja experimentando o novo modelo, a Royal Society divulgou no ano passado um comunicado em que expressava dúvidas quanto à viabilidade financeira das publicações de acesso livre.

“O processo de revisão por pares custa tempo e dinheiro”, diz a declaração. Apesar de sua influência, a PLoS (que é uma organização sem fins lucrativos) admite em seu site que ainda não consegue fechar as contas.

A revista vem aumentando progressivamente o preço cobrado dos autores pela publicação de artigos, mas ainda depende da ajuda de patrocinadores e busca recursos também na venda de anúncios.

Se a viabilidade das revistas com acesso livre imediato ainda está em questão, no caso das bibliotecas digitais é a falta de controle que preocupa os críticos.

Nelas, os artigos são depositados diretamente pelos próprios autores. Muitos têm publicado seus trabalhos nesses repositórios sem antes submetêlos ao processo de “peer review”, ou revisão por pares, o que lança dúvidas sobre a confiabilidade dessas pesquisas.

“Creio que os cientistas vão migrar para os métodos de publicação direta”, diz Ennio Candotti, presidente da SBPC. “É mais fácil, mas não é garantido. O sistema de revisão e autenticação é muito importante, funciona como um filtro.”

Numa prática mais aceita, esses sites são usados também para tornar públicas, após um tempo, pesquisas que já foram aceitas e editadas por revistas tradicionais.

Desde 2005, os National Institutes of Health (NIH), o Ministério da Saúde dos EUA, recomendam aos pesquisadores que publiquem seus estudos em até seis meses num desses repositórios gratuitos, como o PubMed Central.

Numa pesquisa do governo britânico, 90% dos cientistas ouvidos disseram que se interessariam em divulgar seu trabalho dessa maneira.

Segundo reportagem do “New York Times”, no entanto, apenas 3,8% dos pesquisadores financiados pelos NIH seguem a recomendação.

“Embora sejam desapontadores, os números não significam que os cientistas não estão interessados em ampliar o acesso ao seu trabalho”, acredita Varmus.

“Há muitos fatores: o NIH não é muito enfático (‘recomenda’, em vez de ‘requerer’); muitos periódicos pressionam os autores a não colaborar; o processo de publicação ainda não é tão simples como poderia ser, e muitos cientistas simplesmente não conhecem as questões mais profundas envolvidas nisso.”