10 abril 2007

“Carrinha dos livros” sacia idosos de Vila Soeiro

Por António Sá Rodrigues
em As Beiras Online
26 março 2007

A mesma Biblioteca Itinerante que circula pelas aldeias da Guarda, levando livros às crianças das escolas, também está a saciar o gosto pela leitura de seis idosos de Vila Soeiro.

Vila Soeiro é uma freguesia "encravada" na serra, conhecida por 'Cabo do Mundo'. Ali residem 48 pessoas - a maioria idosos - e a biblioteca móvel passou a ser recebida pelos habitantes com a naturalidade com que recebem o merceeiro ou o padeiro. Uma vez por mês, a meia dúzia de leitores inscritos, abeira-se da viatura e, em vez de "pedir" pão ou arroz, escolhe livros que consome nos dias seguintes. A Biblioteca Itinerante - uma carrinha de cor avermelhada - é conduzida por Nelson Neves, que ao chegar à aldeia dá duas buzinadelas e estaciona no largo principal, ficando à espera dos primeiros "fregueses".

Na última visita, nos últimos dias, chegou à localidade por volta das 09H30. Três minutos depois apareceu a primeira leitora, que transportava num saco de papel os cinco livros, já lidos, requisitados no mês anterior. "Venho levantar livros sempre que posso", referiu Natércia Costa, 70 anos, professora regente reformada. "Levo três, quatro ou cinco livros. É conforme a altura do ano e a disponibilidade que tenho", explicou. "Gosto de todos os livros, especialmente de tudo o que toca a histórias de crianças e grandes portugueses", adiantou.


PESSOA E DAMIÃO PERES

Desta vez leva quatro livros: "Fernando Pessoa, Iniciação Global à obra", de António Quadros, "Mariana na Fronteira do Sonho", de Mariana Aguilar, "D. João I", da autoria de Damião Peres, e "Pelo fio de um sonho", de José Jorge Letria. Antes de abandonar a carrinha, com os novos livros dentro do mesmo saco de papel, confidenciou à Agência Lusa que estava ansiosa por "devorar" as obras. "à tarde já os vou começar a ler. Não tenho preferências, começo por um qualquer", disse.

A professora reformada mostrava-se contente com a passagem da Biblioteca Itinerante pela sua aldeia, salientando que "é muito útil". "Se não fosse a biblioteca era pior, porque tinha de reler os livros que tenho em casa, assim, sempre leio algo que nunca li". Ainda Natércia Costa não tinha concluído o processo de requisição, quando chegou à viatura a segunda e última utilizadora do dia - Maria Rodrigues, 69 anos, doméstica. Carregava na mão a obra "Fernando Pessoa, antologia poética seguida de fragmentos do Livro do Desassossego", de Isabel Pascoal.


"GOSTO MUITO DE LER"

Após uma rápida selecção, escolheu dois livros que lhe vão fazer companhia nos próximos dias: "A Poesia", de Maria Manuela Couto Viana e "A Revolução Industrial da Idade Média", de Jean Gimbel. "Gosto muito de ler e só não venho levantar livros quando não dou conta da carrinha", assegurou com um rasgado sorriso. "Tenho o hábito de ler desde criança. Normalmente leio um bocadinho à noite, a seguir ao almoço e ao domingo à tarde. às vezes até leio certos trechos para o meu marido, porque ele não gosta de ler", disse, admitindo que tem em casa "muitos livros" que ainda não leu, preferindo aqueles que levanta na biblioteca ambulante. "Só não leio mais porque tenho problemas de cabeça e não posso abusar", rematou Maria Rodrigues.

Antes de se despedir, recordou que quando a biblioteca incluiu Vila Soeiro no roteiro, o seu pai "que morreu com 98 anos, era o único utente". "A biblioteca veio cá por causa dele", afirmou orgulhosa. Após a saída da idosa, o mesmo "silêncio de ouro" que invadia a aldeia de Vila Soeiro de uma ponta à outra, apoderou-se do interior da Biblioteca Itinerante.


O BIBLIOTECÁRIO

Pelas 10H00, o motorista e bibliotecário Nelson Neves olhou para o relógio e declarou convicto: "Já não vem mais ninguém". "Como é altura de trabalhar as terras e de fazer as sementeiras as pessoas já não procuram tanto a biblioteca como nos meses de Inverno, em que não têm praticamente nada para fazer", justificou.

Segundo Nelson Neves, "a Biblioteca Itinerante é o único meio de lhes trazer livros à porta, pois se assim não fosse teriam que os comprar e nem todos têm essa facilidade". Comparando a "clientela" sénior com a júnior, admitiu que "os idosos levam os livros que sabem que vão ler e os miúdos levam, por vezes, os livros pelas capas e depois não os lêem". Minutos depois, a carrinha de cor avermelhada com letras brancas tinha os motores a trabalhar e seguiu viagem para a vizinha localidade de Aldeia Viçosa, onde é esperada pelas crianças da escola local. àquela hora do dia, os poucos habitantes de Vila Soeiro estavam entregues às lides agrícolas. Amélia da Conceição, viúva, 78 anos, deu pela passagem da "carrinha dos livros", mas disse que nunca a procurou porque não tem tempo para ler. "Não vou lá porque tenho pouco vagar de ler. De dia não tenho vagar e à noite, assim que me sento, dá-me logo o sono", justificou.

Já Maria dos Anjos, 83 anos, também viúva, lamenta não saber ler para poder dirigir-se à biblioteca que visita a aldeia. "Eu não sei ler, se soubesse ia lá buscá-los [os livros]. Tenho um desgosto muito grande por não saber ler uma única palavrinha, mas agora já não aprendo porque sou velha", referiu. "Se soubesse ler, passava um bocadinho agarrada aos livros", acrescentou, lembrando que no seu tempo de infância e juventude não teve possibilidades de ir à escola porque foi obrigada a tomar conta dos irmãos. A Biblioteca Itinerante da Câmara Municipal da Guarda é herdeira do projecto nacional da Fundação Calouste Gulbenkian. Na Guarda, as quatro carrinhas da Gulbenkian pararam em Maio de 1994.