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Tagil Ramosem Valor Econômico23 outubro 2007Numa manhã fria de setembro, o catador de materiais recicláveis Ademir Alves dos Santos, 33 anos, carregava às costas uma carga incomum na Baixada do Glicério, bairro da Liberdade, em São Paulo. Acostumado a puxar carroça cheia de papelão, dessa vez Santos transportava algo muito diferente: uma coleção de 300 livros. A carga não podia ser vendida por quilo, como ele costuma fazer diariamente nos pontos de reciclagem, onde troca por dinheiro materiais jogados na rua. As obras literárias sequer poderiam ser lidas por ele, que não sabe ler.
Mas esse baiano, natural de Caraguataí, um pequeno povoado perto de Cruz das Almas, a 146 quilômetros de Salvador, transformou-se naquele momento no homem-símbolo de uma iniciativa para promover a leitura. O projeto Carroça da Leitura, lançado pela ONG Associação Maria Flos Carmeli, o escolheu para transportar aquela biblioteca itinerante improvisada por algumas dezenas de metros, fazendo o trajeto entre a sede do Projeto Quintal da Criança e a casa paroquial da Igreja da Paz.
"Quero que meus filhos tenham um destino diferente do meu", confessa Santos. "Faço isso por eles." Enquanto carregava os livros, Santos foi acompanhado de perto por uma pequena passeata, formada por voluntários, professores, educadores e alunos da creche mantida pela ONG. Ali estudam suas filhas Vitória, 4 anos, e Sara, 7.
Vivendo há cerca de dez anos em São Paulo, a coleta de recicláveis foi a maneira que Santos encontrou para sustentar a família, as duas meninas e mais outros seis filhos. O trabalho informal garante mensalmente uma renda de até R$ 1.500, dinheiro com o qual sustenta a filharada e a mulher, Francisca Gabriel Pereira, que também o ajuda na tarefa de carrilheiro.
Santos e a esposa não têm palavras para agradecer a Associação Maria Flos Carmeli, criada em 2004 e que ensina os filhos de catadores do bairro. Essa ONG é resultado do sonho de uma freira visionária, a irmã Derly Fabres, cujo projeto recebeu apoio de uma associação humanitária italiana homônima, da prefeitura e do
Instituto C&A.
Iniciativas como as da "Carroça da Leitura" surgem como o oásis no desértico panorama da leitura no país. No Brasil, existem ainda 613 municípios que não têm sequer biblioteca pública, de acordo com dados do governo federal. A situação já foi pior. Em 2003, eram 1.173 cidades nessa situação.
São Paulo conseguiu vencer essa realidade constrangedora. "Em 2003, havia 84 municípios sem biblioteca no estado", conta José Luiz Goldfarbe, responsável pelo programa São Paulo - Um Estado de Leitores. "Hoje, esse número é igual a zero". A solução veio com o casamento entre poder público e iniciativa privada. O município fornecia o local e a Secretaria de Cultura do Estado participava com o treinamento e o know-how.
O dinheiro vinha de padrinhos corporativos, que bancaram a aquisição do acervo básico de 600 livros, para cidades com até 10 mil habitantes. Acima dessa população, o município ganhava 1.000 exemplares. O custo aproximado girava em torno de R$ 20 mil por biblioteca. O total do investimento, em torno de 1,7 milhão teve o investimento de empresas como o
Banco do Brasil,
ABN AMRO,
Santander, BankBoston,
Instituto Itaú Cultural,
Grupo Silvio Santos,
Bovespa,
Tim,
Faap e as fundações Nestlé,
Camargo Corrêa,
Telefônica e Victor Civita, dentre outros.
Juntos, o dinheiro privado e a estrutura dos governos federal, estadual e municipal parecem ser uma solução para o déficit de leitura do país. A luta não é mais somente contra o analfabetismo pleno, como era no final dos anos 50, quando a Unesco (
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) definia o analfabeto como a pessoa que não conseguia ler ou escrever algo simples.
Atualmente utiliza-se o conceito de analfabetismo funcional. Uma pessoa que não possua habilidade necessária para satisfazer as demandas do seu dia-a-dia por meio da leitura é considerada analfabeta. Não basta ler e escrever, é preciso compreender aquilo que está sendo transmitido pelo texto. Por esse critério, considera-se analfabeto funcional aquele que não possui as habilidades de leitura, escrita e cálculo necessárias para viabilizar seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Sob esta perspectiva, o quadro brasileiro é alarmante. Segundo de pesquisa de 2005 do
Instituto Paulo Montenegro (IPM), braço social do grupo
Ibope, apenas 26% dos brasileiros, na faixa de 15 a 64 anos de idade, encontram-se no nível pleno de alfabetização. Esses dados são do V Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), sobre habilidades de leitura e escrita.
Em novembro devem ser divulgados os resultados da sexta edição do Inaf. "Temos a expectativa de uma ligeiríssima melhoria no índice, em decorrência de alguns fatores, como o aumento da escolaridade, aumento do número de bibliotecas e iniciativas da sociedade para incentivar a leitura", avalia Ana Lúcia Lima, diretora-executiva do IPM. "No entanto, a evolução ainda é baixa e muito aquém do desejável."
De fato, o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constata o aumento da escolaridade da população brasileira. Dados desse instituto mostram que a parcela de pessoas na faixa entre 15 e 64 anos, com no máximo quatro anos de estudo, caiu de 37,9% para 33,6% entre 2002 e 2005. Nesse mesmo período, a proporção de brasileiros que completaram o ensino médio ou superior subiu de 35,5% para 40,8%.
Apesar da evolução, o Inaf mostra que o aumento da escolaridade não garante resultados proporcionais em termos de alfabetismo funcional. O desempenho da população mostra uma tendência de melhoria, tanto em letramento quanto em numeramento, mas em ritmo inferior ao da própria escolarização.
A qualidade de leitura do brasileiro, por exemplo, é inferior À da população carcerária de São Paulo. Em pesquisa com 800 presos, em 32 presídios, o Inaf deles bateu a média nacional.
O acesso ao livro é um dos fatores decisivos para aumentar o letramento do país. O último dado sobre o assunto data do ano de 2001 e mostra uma taxa baixíssima: 1,8 livro por habitante por ano. O que coloca o Brasil atrás da Colômbia (com 2,4 livros/habitante) e muito longe de países como a França (7,0).
A
Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o
Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) planejam divulgar no começo de 2008 a nova edição da pesquisa Retrato da Leitura no Brasil. "Temos expectativa de que o novo índice de livro/habitante deva ser superior a da última pesquisa", estima Armando Antongini, diretor-executivo da CBL. O estudo, que deve ser realizado em 40 cidades brasileiras, num universo de 5.570 habitantes, deve sair a campo nos próximos meses.
A previsão de melhoria de Antongini se dá em decorrência dos resultados de pesquisas feitas em microrregiões. Um estudo realizado no início do ano pela Câmara Rio-grandense do livro traz o indicador de 5,5 livros por habitante por ano. Outro estudo com metodologia análoga, feito em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, chegou à taxa de 6,5 livro/habitante/ano.
Mesmo que se verifique um aumento do índice geral de leitura, a situação do país ainda é alarmante. São 16 milhões de analfabetos com mais de 15 anos (8,8%) e 33 milhões de analfabetos funcionais (18,3%). "Temos uma dívida muito grande com as gerações passadas e futuras", alerta a educadora América dos Anjos Costa Marinho, do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). "Num mundo letrado como o que vivemos, a grande possibilidade de inclusão social gira em torno do acesso à escrita."
Daí a importância de se formar pessoas que realmente usem a palavra escrita para a transformação de sua realidade. Essa ação ainda é impossível para os cerca de 12% dos brasileiros com mais de 15 anos que são considerados analfabetos. Mas a sociedade civil, por meio de iniciativas de entidades não-governamentais e de empresas, têm feito esforços para diminuir as lacunas educacionais.
Não basta ensinar o bê-á-bá. É preciso realmente formar o leitor, em toda sua plenitude. Projetos como o Entre na Roda: Leitura na Escola e na Comunidade, desenvolvido pelo
Cenpec com o apoio da
Fundação Volkswagen, têm contribuído para formar leitores em cidades como Taubaté, Caçapava, Caçapava Velha, Igaratá, Monteiro Lobato e Jambeiro, no Vale do Paraíba (SP).
A idéia, iniciada em 2003, vai além de colocar os livros nas estantes das bibliotecas. A ação envolve escolas públicas, bibliotecas, ONGs e associações comunitárias em torno da realidade da leitura e da formação do leitor. O modelo implementado é exemplo para o mundo. O Cenpec foi colocado pelo jornal Financial Times, em julho, entre as melhores ONGs do mundo.
Outra experiência bem-sucedida vem do Programa Ler é Preciso, do
Instituto Ecofuturo, criado e mantido pelo
Grupo Suzano. Sua mola propulsora é a integração de projetos focados na democratização do acesso ao conhecimento e aos bens culturais, com o objetivo de formar uma sociedade leitora e escritora.
Para realizar o processo educativo em sua totalidade, o programa conta com 61 bibliotecas comunitárias implantadas em sete Estados (Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo). Também realiza seis concursos de redação, mobilizadores de mais de 500 mil estudantes em todo o país.
O Ecofuturo desenvolve ainda ações de formação e intercâmbio, como a Primavera Ler é Preciso. "Durante o último Corredor Literário, realizado na avenida Paulista em São Paulo, no começo de outubro, lançamos o Livro Gigante, uma iniciativa para a instituição do dia 12 de outubro como o Dia Estadual da Leitura", informa Christine Fontelles, diretora de Cultura e Educação do Instituto Ecofuturo. "Queremos incentivar que os pais dêem livros a seus filhos e não somente brinquedos."
Outros empreendimentos culturais estão presenteando milhões de livros para quem não tem acesso a ele. É o caso da
Fundação Educar DPaschoal. "Nesses oito anos de atuação, colhemos os frutos da distribuição gratuita de 30 milhões de livros para escolas públicas e instituições educacionais", informa Isabela Pascoal Becker, coordenadora da Fundação Educar. "Queremos incentivar o hábito da leitura por meio da publicação livros instigantes e bem editados". Ao todo, foram mais de 30 títulos, com obras dirigidas aos públicos infanto-juvenil e adulto, em sete coleções.
Para atuar nessa área, não é preciso ser uma empresa de grande porte com a DPaschoal. Basta ter força de vontade e iniciativa. É o que provou a escritora Patrícia Engel Secco. Há cerca de nove anos, ela largou uma carreira segura na área financeira para sair pelas ruas doando os livros de sua autoria. "Fui chamada de louca pelos colegas", revela. A "loucura" de Patríca deu origem ao Projeto Feliz, que já distribuiu, segundo informação da escritora, 30 milhões de livros. As crianças de todas as idades agradecem.